Observatório de imagens inalcançáveis – Leka Mendes em conversa com Ana Roman

 Na ocasião de sua mostra individual Observatório de imagens inalcançáveis, parte da Temporada de Projetos 2022, do Paço das Artes, a artista Leka Mendes teve acompanhamento da curadora e colaboradora da Piscina, Ana Roman, que realizou uma entrevista com a artista, publicada no material gráfico que acompanha a mostra e a qual foi cedida gentilmente pela instituição e pela curadora para que compartilhássemos aqui.

Leka foi uma das artistas participantes da mostra Piscina PARALELA, que aconteceu em abril deste ano e também fez parte de Georamas da Memória, curadoria de Ana Roman e Cecilia Vilela para o viewing room da Piscina na SP-Arte 2021, e na exposição coletiva pop-up da Piscina no Andar 43, que aconteceu simultaneamente na mesma ocasião.

Nesta quinta-feira, 20 de outubro, às 19h, Ana Roman e Leka Mendes se reúnem novamente para uma conversa e lançamento do catálogo das exposições da Temporada de Projetos. Clique aqui para saber mais.

Temporada de Projetos 2022

Data: 23.07 a 30.10.2022

Visitas: de terça a sábado, das 11h às 19h, domingos e feriados, das 12h às 18h

Local: Paço das Artes - R. Albuquerque Lins, 1345 - Higienópolis


Leka Mendes, Observatório de imagens inalcançáveis, 2022, Paço das Artes, São Paulo. Vista da exposição. Foto: Leka Mendes.

Observatório de imagens inalcançáveis

Acompanhamento curatorial Ana Roman

Leka Mendes e eu conversamos por alguns dias em seu ateliê, no processo de realização dos trabalhos que integram a instalação Observatório de imagens inalcançáveis, projeto que integra a Temporada de Projetos 2022. Nessas conversas, trocamos diversas referências que trazemos como breves citações neste texto.

Ana Roman Leka, você poderia nos contar como a fotografia aparece em sua trajetória artística?

Leka Mendes Cursei arquitetura até a metade da faculdade e me formei em desenho industrial na Belas Artes. Comecei a trabalhar com fotografia nesse período, como assistente, e segui trabalhando na área.

Na verdade, sempre trabalhei com fotografia a partir de um caráter experimental, mesmo antes de entrar no circuito das artes. Tive um pouco de dificuldade em me inserir em grupos de discussão e de acompanhamento em fotografia: usava uma máquina fotográfica que não funciona direito, meio quebrada, aquelas que você mesmo tem que rodar o filme, que tem uma entrada de luz maior que o normal (…). Eu sempre me interessei por não ter, na minha prática como fotógrafa e, posteriormente, artista, o controle da situação. Gosto de suspender o controle da imagem pela técnica e permitir que o resultado seja inesperado. A mim me interessa o inesperado que vem da exploração dos materiais envolvidos no processo fotográfico.  

Leka Mendes, Estrutura Planetária, 2022. Foto: Leka Mendes.

AR Nos seus trabalhos e séries mais recentes, você trabalha a linguagem fotográfica a partir de uma espécie de ‘campo expandido’. Em alguns momentos, as fotos são transferidas para fragmentos de entulho; em outros, elas são objeto de um processo de entintamento. Como esses processos aparecem na sua prática e de que forma eles revelam um pensamento fotográfico?

LM Minha pesquisa artística parte de um interesse pelos naturalistas. Em um determinado momento, comecei a mobilizar alguns processos mais experimentais: tenho uma série de fotografias que mergulho na tinta. Eu imprimo as fotografias em preto e branco, e faço o processo de mergulhá-las em tinta: procuro usar a tinta como um químico revelador. Chamo esse processo de pós-revelação: ponho a tinta, misturo na própria foto, tiro das partes que não quero que fiquem pintadas. É um processo laboratorial e o resultado é sempre algo incontrolado: você só descobre depois que todo processo foi feito. Então, posso dizer que tenho, sempre tive, esse jeito de explorar a fotografia.

E, depois de ter incorporado o entulho como suporte para minhas impressões, comecei a entendê-lo também enquanto matriz, como se ele fosse o negativo da fotografia. Eu utilizo o entulho como um tipo de carimbo. O entulho passa a ser usado para produzir as imagens. Cada trabalho é único, pois é uma composição a partir desses diversos fragmentos de entulho. Ao mesmo tempo, porém, esse procedimento guarda um pensamento fotográfico, uma possibilidade de reprodução. O entulho, que é o negativo, pode ser sempre impresso em uma nova superfície.

Se eu conversar com um gravurista, ele vai me dizer que há um pensamento de gravura nesse processo. Para mim, tudo parte de um pensamento fotográfico. Os trabalhos da série Antropocênicas são fotografias. Algumas pessoas falam que é pintura, mas, para mim, tem um lugar de produção de imagem que é da fotografia.

A natureza é apenas o nome para excesso.
— William James [1]

Leka mendes, Notas do Antropoceno, 2018. Foto: Leka Mendes.

AR Para mim, na série Antropocênicas, você está criando paisagens a partir de rastros daquilo que já temos no mundo. Há um processo de revelação desses rastros, que assumem outra forma quando deslocados.

LM Quando eu trabalhava com o que as pessoas normalmente consideram fotografia, eu viajava para lugares inóspitos para fotografar esses espaços. Atualmente, imagino paisagens que poderíamos visitar para fotografar. Em vez de me deslocar no espaço, crio minhas próprias cenas aqui, no ateliê, usando materiais encontrados. Eu tento explorar as diversas técnicas fotográficas no meu próprio trabalho. Cada um dos fragmentos de entulho se torna uma imagem: algumas das pedras encontradas, quando carimbadas sobre a superfície do tecido, imprimem imagens que se assemelham a casinhas; outras podem ser lidas como satélites ou árvores. Há um tipo de alfabeto que tento criar nessas operações.

Quando começo a trabalhar com tecido – primeiro usando as marcas desses entulhos como matrizes, depois incorporando o próprio entulho nas composições e, por fim, submetendo o tecido a processos químicos com esses compostos ‘reveladores’, como o alvejante e o cloro propriamente dito –, meu objetivo é criar imagens. Nessas composições quase espaciais, da série Logo será noite, por exemplo, quando olhamos de longe, temos a impressão de estarmos diante de uma foto do universo e, quando chegamos perto, tudo isso muda. Um dos trabalhos que estará em exposição no Paço das Artes é um ‘telemicroscópio’ para ver galáxias: construí um “telescópio” com uma lente close-up. O observador precisa estar próximo ao objeto, como um microscópio, mas ele parece estar diante de um mundo distante.

Leka Mendes, Planetário, 2022. Foto: Leka Mendes.

AR As imagens do universo passam a estar presentes em seus trabalhos mais recentes. De que modo essas imagens – que trazem, em si mesmas, outros tempos – passam a se relacionar com sua pesquisa artística?

LM Sempre penso, por exemplo, nas imagens que o próprio telescópio Hubble faz das diversas galáxias. Há alguns dias, por exemplo, ele fez um novo grande registro do espaço: captou 2 mil horas de imagens em apenas 250 horas de órbita. O tempo de registro dessas fotos é muito maior que o instante que costumamos atribuir à linguagem fotográfica e que, de certa forma, me interessa. O Hubble parece estar registrando o passado mais profundo que temos, talvez o começo do universo.

Os usos dos compostos químicos sobre os tecidos também estão submetidos ao tempo, e isso tem a ver com alguns dos teóricos que tenho estudado, como o Emanuele Coccia. Quando submeto os tecidos aos compostos e exponho ao sol, estou, de algum modo, afirmando que o sol é uma força da natureza transformadora. Tudo faz parte de um mesmo ciclo: a criação de imagens é a criação da vida, e o sol é um dos agentes mais importantes nesse processo. O sol cria e revela as imagens, do mesmo modo que ele cria o mundo que nos cerca. E isso tudo afirma a ideia de que somos seres solares: não existimos sem ele.

O conjunto dos objetos e utensílios que nos cercam vem das plantas (os alimentos, o mobiliário, as roupas, o combustível, os medicamentos), mas, sobretudo, a totalidade da vida animal superior (que tem caráter aeróbico) se alimenta das trocas orgânicas gasosas desses seres (o oxigênio). Nosso mundo é um fato vegetal antes de ser um fato animal.
— Emanuele Coccia [2]

AR Nesses trabalhos, o que me chama atenção é que há um processo de produção de imagens imaginárias do espaço sideral. Nós não sabemos se as estrelas que você retratou existem ou não, mas nada impede que, no movimento de nascimento e morte das estrelas, essas paisagens siderais tenham ocorrido ou ocorram em algum lugar do futuro. Em alguns trabalhos, as estrelas parecem estar sendo sugadas por um buraco negro. Por que o buraco negro, essa região do espaço-tempo que concentra tanta matéria e que não deixa nem que a luz escape, aparece nesses trabalhos?

LM O buraco negro está sempre sugando tudo e ele pode estar apontando para onde a gente está caminhando. Existem também os buracos brancos, né? Eles existem de uma forma teórica, mas não há ainda o registro de um desses. Eles são os lugares a partir dos quais toda matéria é expelida, de onde ela vem.

Os buracos negros são formados quando uma grande estrela começa a ficar sem combustível e colapsa sobre sua própria gravidade. Pensando em como exploramos, desde os solos mais profundos até o espaço sideral, parece que estamos caminhando para isso. Quando comecei a fazer os primeiros testes com os detritos como estrela, já fiz os buracos negros, já vinha fazendo com outras experiências com o alvejante e os carimbos de entulho.

Recurso natural para quem? Desenvolvimento sustentável para quê? O que é preciso sustentar.
— Ailton Krenak [3]

AR Seu trabalho tem, o tempo inteiro, apontado para a criação de paisagens. Mas na materialidade que você explora, há uma relação muito próxima com a cidade. Por que o elemento urbano aparece nos trabalhos?

LM Quando eu fazia essas viagens para fotografar, comecei uma série que se chama Operadores. Eu buscava na paisagem algumas construções humanas e criei um sistema que registrava tudo que eu poderia, de algum modo, utilizar o sufixo ores para descrever. Eu buscava qualquer tipo de interferência arquitetônica do homem na geomorfologia e geologia dos lugares, queria entendê-las do ponto de vista extrativista, exploratório, mas também do ponto de vista do abrigo.

A arquitetura sempre esteve presente no meu trabalho. Eu fotografo comercialmente arquitetura. E eu sempre pensei muito em como o ser humano produz abrigos para si. Passando pela sedentarização, ou até antes dela, e pensando também nos animais, há uma necessidade de todos que estão no planeta de produzir um teto. E recentemente fiz um curso na filosofia e um dos assuntos era que, conforme as comunidades iam se organizando em torno desses abrigos, construíam-se também praças e monumentos. A construção de abrigos está diretamente relacionada à construção de imagens. Imagens que inicialmente tinham a ver com deuses: do mesmo modo que se produzem, por exemplo, abrigos contra o vento, cria-se a imagem do Deus do vento, que é objeto de culto.

Essas referências – e esse atlas de imagens – começaram a aparecer diretamente no meu trabalho. Inicialmente, apareciam como uma coisa geológica, mais mineral mesmo, e eu produzia umas peças de argila. Depois, o mineral passou a aparecer industrializado no meu trabalho, porque eu comecei a usar muito entulho – granitos, mármores e tudo que eu encontrava em reforma de casa. De alguma forma, ao usar esse mineral encontrado na paisagem da cidade no meu trabalho, eu tento fechar um ciclo. O mineral é extraído da natureza e usado para construir a cidade, depois ele vira entulho e eu me aproprio dele para construir outras imagens. Quando ele vira cidade, ele já foi usado para produzir imagem, mas é como se ele fosse usado para produzir outras imagens. Há sempre uma relação com a memória e com um ciclo da vida e da natureza.

AR Existe uma dimensão de sci-fi na criação dessas imagens?

LM Para mim, estudar ciência é também estudar história. Eu acho que o Mario Novello fala isso. Imagina que tudo que a gente acredita que é ciência hoje foi, no passado, encarado como absurdo.

Eu adoro sci-fi, principalmente quando retrata viagens a outros planetas e tempos. Comecei a pensar, nestas séries mais recentes, a partir de uma ficção de exploração interplanetária. De alguma forma, tento remeter à história da exploração humana em outros planetas e nas consequências desse processo que guarda, em si mesmo, um caráter extrativista. O Observatório, por exemplo, que estou criando para a exposição do Paço das Artes, é essa mistura de um desejo de habitar o desconhecido de outro planeta e as consequências desse processo.

Até aqui a ciência tem tido sucesso na construção de uma estrutura formal capaz de produzir tecnologias geradoras de transformações do cotidiano da sociedade. Em particular esse projeto permitiu pensar a construção de estruturas globais como consequências formais de processos locais. Uma versão sofisticada, mas igualmente idealista, assegurou na prática a convicção de que o todo se produz a partir de suas partes e de algumas circunstâncias específicas. Foi graças a essa ilusão que a ideia de unificação dos processos físicos instalou-se na sociedade dos físicos como um eldorado a ser conquistado. Não como um simples fator simplificador, mas como uma etapa indispensável para a compreensão dos fenômenos observáveis
— Mario Novello [4]

Leka Mendes, MATISSE, 2022. Foto: Leka Mendes.

AR Dentro de tudo que conversamos, você poderia nos contar um pouco mais sobre a reunião dessas imagens siderais no Observatório de imagens inalcançáveis? Por que construir um observatório para elas?

LM Conforme fui produzindo os trabalhos da série que dá origem ao Observatório e ocupando o ateliê, percebi que essa experiência imersiva, de poder circular entre os trabalhos era importante. Não temos noção da profundidade do universo, as “linhas” de estrelas que formam as constelações só existem do ponto de vista terrestre: a partir de outro ponto da galáxia, já não seria mais possível nos orientarmos por esses desenhos. A mim me interessam as distâncias absurdas entre os planetas e os dispositivos que nos fazem, de algum modo, nos sentir mais perto delas.

Esses diversos pontos de vista e distâncias me fizeram pensar em “telemicroscópios”, instrumentos que parecem telescópios com lentes close-up a que já me referi anteriormente. Esses instrumentos vão orbitar pela instalação, assim como outros objetos que serão mudados de tempos em tempos.

Neste projeto, sigo com as seguintes perguntas que norteiam minha pesquisa: o ato de construir essas imagens siderais está na mesma busca e se assemelha ao dos antigos seres humanos ao desenhar nas paredes das cavernas? Como a prática de assinalar o espaço sideral, marcando-o num tecido, se configuraria na possibilidade de materializar o desejo de tocar o intangível? Seria a possibilidade de trazer até nós imagens fora do alcance do olhar e, após a pintura, o próprio tecido se configuraria como um corpo cósmico vindo do espaço sideral? Seria uma possibilidade de aproximação dos vestígios e dos mistérios celestes, siderais e cósmicos?


[1] William James. A Pluralistic Universe. Nova York: Longmans, Green, and Co., 1909. Tradução nossa.

[2] Emanuele Coccia. A vida das plantas: uma metafísica da mistura. Florianópolis: Editora Cultura e Barbárie, 2018.

[3] Ailton Krenak. Ideias para adiar o fim do mundo. São Paulo: Companhia das Letras, edição Kindle, 2019.

[4] Mario Novello. “Manifesto Cósmico”. In: O universo inacabado. São Paulo: n-1, 2018.

Paula Plee