Sobre Paula Rego e suas Histórias

Paula Rego em 1998. Foto: Nicholas Sinclair. Via The Guardian.

2021 foi o ano de Paula Rego. A dama, uma das maiores figuras da pintura figurativa no mundo, ganhou uma grande retrospectiva no Tate Britain em julho, a maior de sua carreira. Porém, desde 2009 Rego possui no município de Cascais, Portugal, um museu dedicado à sua obra: a Casa das Histórias Paula Rego

Paula Rego, The Dance, 1988. Foto: The Tate © Paula Rego. Via The Guardian.

Paula Rego, O Tempo – Passado e Presente, 1990.

Composto praticamente de obras doadas pela artista e com uma programação que inclui diálogos e exposições temporárias com obras provenientes de empréstimos de outras instituições, a Casa das Histórias foi projetada pelo arquiteto portugues Eduardo Souto de Moura. O prédio, de cor terracota, se assemelha a duas pirâmides com o topo recortado. As referências de Moura foram as torres e faróis presentes na iconografia local da riviera portuguesa – mas, ao observar o prédio de longe, é impossível deixar de compará-lo às misteriosas pirâmides e esfinges egípcias, moradas de grandes segredos históricos e simbologias místicas, como o trabalho de Paula.

Casa das Histórias Paula Rego, Cascais, Portugal. Foto: James Florio.

O trabalho de Rego por si só revela carga mágica,  visceral, erótica e política. Suas séries mais conhecidas são Aborto, de 1998, e sobre Contos de Fadas, que começa em 1974 e permeia toda sua trajetória. A primeira, uma série de dez pinturas, todas sem título e pintadas em pastel, foi produzida sob o contexto de um referendo sobre a legalizaço do aborto em Portugal. Debruçando-se sobre histórias que escutou e sobre si mesma (Paula afirma que fez diversos abortos enquanto estudante na Slade, em Londres), as pinturas retratam mulheres que, parecem ter acabado de passar por um procedimento abortivo. Os tons pastéis evocam a dor física de uma situação que, por ser um tabu até os dias de hoje, é raramente retratada. é interessante perceber que essas mulheres de Paula não estão de luto ou mesmo sofrendo: é uma decisão incontornável daquelas que escolhem outros caminhos que não a maternidade – principalmente no contexto da sociedade portuguesa, que era “matadora para mulheres”.

Obras da série Aborto, desenvolvidas por Paula Rego na década de 1990 em exibição na Casa de Histórias Paula Rego. Via Observador.

Sem título No 1, 1998, parte da série Abortos: “Muitos críticos preferiam falar sobre as cores a falar sobre o tema da pintura, mas as mulheres sabiam do que se tratava” disse a artista. © Paula Rego Via The Guardian

Pesquisando sobre a artista para escrever esse texto, me debruço sobre ensaios e entrevistas. Fala-se muito sobre a conturbada e intensa relação de Rego com seu marido, o também artista Victor Willing, como se fosse impossível pensar em Paula sem pensar Victor. De fato, é incessantemente machista a maneira como o trabalho de mulheres, seu legado e sua história têm sido abordados.

Quando jovem, Paula afirmava que queria fazer parte do clube dos meninos, com Hockney e Fauerbach. A beira de seus 87 anos, pode-se afirmar  categoricamente que sim, ela conseguiu entrar para o clube. Apesar de portuguesa, a pintora faz uso de um inglês perfeito, mantém um estúdio na parte norte de Londres e viveu boa parte de sua vida na capital inglesa. Seu sucesso, muito merecido, não seria também fruto em parte da concessão de ter vivido e se adaptado à cultura do Reino Unido? Afinal, o que seria a definição de sucesso?Ter retrospectivas em museus americanos e ingleses? Não há programação em instituições culturais que dê conta das grandes mentes nessa lista de espera – mas deixemos esse assunto para um outro texto.

Paula Rego - Tate Britain 2021

Vista da grande retrospectiva de Paula Rego que esteve em exibição no Tate Britain, de junho a outubro de 2021. Foto: Tim P. Whitby / Getty.

Na prática de seu trabalho, Paula nunca fez concessões. Absolutamente dedicada, seus traços cartunescos figurativos preenchem telas desde o início de sua trajetória, quando a preferência de galerias, museus e colecionadores era por arte abstrata. Na Casa das Histórias, onde há sete salas, percebemos que o nome do museu faz todo sentido: à primeira vista suas telas parecem ilustrações de contos de fadas, com uma narrativa imposta. Porém basta um momento para entender que tratam-se de símbolos emocionais da experiência feminina (que, por sua vez, é moldada pela cultura), com múltiplas interpretações. O fenômeno catártico é imediato porque suas imagens conversam com o inconsciente, com a sombra - com nosso duplo recalcado. De fato, as telas de Rego podem ser chamadas de assombradas, no sentido literal do termo: o contraste claro/escuro adiciona carga dramática excepcional. 

Paula Rego, Amor, 1995.

Outro fato que chama atenção é a configuração física de seus personagens. Tanto as posições em que se apresentam quanto sua anatomia não só nos aproximam do caráter lúdico do universo da artista, como contestam a pulsão de vida. Há um destaque nas coxas e pernas, sempre de certa forma protuberantes, sem necessariamente serem desproporcionais. Mais uma vez trabalhando com contrastes, a força e a fragilidade das camadas física e psicológica dos personagens imprimem a universalidade que faz o trabalho de Rego comunicar-se tão bem com diferentes contextos sociais e culturais. É sempre um êxtase ver suas pinturas e desenhos.  Que honra, meus amigos, viver ao mesmo tempo que Paula.

Paula Rego, Possession I, 2004. © Paula Rego / Cortesia Coleção Fundação de Serralves, Museu de Arte Contemporânea. Via The New Yorker.

Paula Rego, The Pillowman, 2004. © Paula Rego. Via The New Yorker.