Perfil | Anaïs-karenin

Dando continuidade aos perfis de artista que iremos divulgar aqui no site a partir de agora na aba Trampolim trazemos hoje uma entrevista com a artista Anaïs-karenin.  Conhecemos a Anaïs em 2018, quando a artista nos convidou para visitar sua instalação Green Scapes In Grey Foams no Projeto Estufa, parte da 23a edição do SPFW - São Paulo Fashion Week. Anaïs foi também uma das artistas convidadas para integrar a exposição coletiva Ânima que organizamos no final de 2019. 

Anaïs nasceu em 1993, em Jundiaí, no interior paulista e atualmente reside na cidade de São Paulo. Abaixo, a artista nos conta sobre sua trajetória, sua pesquisa atual e principais influências e como se vê nos próximos anos. 

No dia 22 de abril, às 18h, Anaïs se juntará a nós em uma live no Instagram, para um bate-papo, na qual a artista irá falar sobre os temas abordados na entrevista.

Foto de Cássia Tabatine

Foto de Cássia Tabatine

Você pode contar um pouco sobre sua formação e trajetória? Como se deu a escolha de trabalhar como artista?
Me formei em Artes Visuais pela UERJ, onde também fiz meu mestrado em Processos Artísticos Contemporâneos. Atualmente estou fazendo doutorado em Poéticas Visuais na USP. Tenho uma trajetória acadêmica teórica, mas sempre atrelada à produção de minhas obras. O processo criativo e imaginativo sempre fez parte da minha vida e personalidade, e a ânsia por modificar as coisas ao meu redor e minha relação com elas desencadeou em criações e em uma carreira. 

North Matters II, da série Invisible/Immaterial, 2019

North Matters II, da série Invisible/Immaterial, 2019

Qual sua pesquisa atual e que trabalhos você tem desenvolvido nos últimos tempos?
Há muito tempo percorro uma mesma questão: a relação humana com as vidas não-humanas, a forma como a cultura interage com a natureza. Por acreditar que estamos distantes demais desses sistemas naturais iniciei uma pesquisa que chamo de Espaços Simbióticos. Busco imaginar um contexto em que haja mais simbioses colaborativas, maior integrações entre os sistemas humanos e não humanos. Atualmente estou trabalhando na intersecção entre arte e ciência para pensar sobre esse tema e refletir sobre o impacto da ciência no nosso modo de se relacionar com a natureza. Me interesso muito pela arquitetura, por isso desenvolvo majoritariamente trabalhos em instalação, criando sistemas com elementos vivos e materiais artificiais, como concreto. Trabalho com a matéria-prima das construções, lidando com as realidades e sensações que o espaço transmite, criando in loco. Ao utilizar as plantas, trabalho também a partir dos estudos que realizo com ervas medicinais e saberes tradicionais há mais de 10 anos. Me interesso pelo desafio de lidar com elementos vivos dentro da obra, que estão sujeitos às transformações do tempo, e simultaneamente questionar o que difere os elementos naturais dos artificiais. Será que não há vida em tudo? 

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Shizen has dry, detalhe da instalação para o Centro Municipal de Arte Helio Oiticica, 2017

Shizen has dry, detalhe da instalação para o Centro Municipal de Arte Helio Oiticica, 2017

Quais fatos, trabalhos ou experiências mais relevantes/marcantes contribuíram ou afetaram de alguma forma a sua trajetória?
Minha família materna é retirante do sertão do Ceará e desde criança eu ouço narrativas da minha mãe sobre a vida no sertão. A imagem do açude, das brincadeiras na mata, e de uma casa construída de barro, marcaram meu imaginário sobre a natureza. Como a minha avó havia falecido atropelada três meses depois de chegar à São Paulo, retirante da seca, a transposição dessas narrativas me fez refletir sobre a resiliência e a importância da ancestralidade. Nesse caminho de busca ancestral fui direcionada ao Japão. E em 2017 fiz a residência Rice Valley Project na região rural de Quioto. O contato com a dança Butoh, os santuários xintoístas, a filosofia animista e a Cerimônia do Chá influenciaram muito minha pesquisa. O encontro íntimo com o sertão do Ceará e o interior do Japão levou a uma investigação poética sobre a transposição das fronteiras: entre culturas, espaços, artificial e natural, natureza e cultura. O que resultou na minha primeira exposição individual no Japão, realizada na Galeria High Pop, em Tóquio, em 2019.

Quais os trabalhos foram mais marcantes?
Just Find the Fault to Reborn foi a primeira tela que fiz com uma planta viva. Optei por lidar com esse suporte para brincar com a recorrência da representação de paisagens naturais na história da pintura. Na obra, coloco uma planta de bambu viva em uma tela, com suas raízes conectadas a um suporte suspenso com água. O trabalho está suscetível a morrer caso a planta não tenha os cuidados necessários. Essa fragilidade já criou certas dificuldades dentro do mercado da arte, o que considero uma situação interessante. Estou em busca de evidenciar justo esse tipo de conflito que expressa a dificuldade que nossa sociedade tem ao lidar com a natureza de forma real - na qual ela depende de nossos cuidados - , e não apenas de forma contemplativa ou utilitária. 

Quais são suas perspectivas? Como se vê daqui um tempo? Tem algum projeto que deseja realizar mais a longo prazo?
Desejo viver no interior para poder criar obras que tracem uma ligação mais profunda e sistêmica com a natureza. Acredito que preciso estar mais próxima da floresta e do solo para elaborar obras e reflexões que apontem para novos horizontes imaginados. Gosto da ideia do excesso e das grandes escalas, dos sistemas e das coisas nas quais podemos entrar, então desejo criar uma obra viva que agregue todas essas características. 

Acredito que preciso estar mais próxima da floresta e do solo para elaborar obras e reflexões que apontem para novos horizontes imaginados. Gosto da ideia do excesso e das escalas, dos sistemas e das coisas nas quais podemos entrar, então desejo criar uma obra viva que agregue todas essas características.
— Anaïs Karenin

Que mulheres (artistas, escritoras, familiares e figuras públicas) foram/são influências e fonte de inspiração?Avó Carmelina e avó Ana, Márcia X, Glória Anzaldua, Angela Donini, Fernanda Gomes, Yumi Arai, Stela do Patrocínio, Ana Cristina Cesar, Iole de Freitas, Tuane Eggers, Trinh Minh Ha, Naomi Kawase, Lygia Clark, Anne MacIntyre, Fayga Ostrower, Lina Lopes.

O que você faz para se sentir motivada em períodos de baixa/desânimo/bloqueio criativo?
Assim como a natureza é instável e impermanente, nós também somos. Gosto de me esforçar para aderir aos ciclos de alta e baixa emocional, sem me apegar a nenhum deles. Tento apenas parar de lutar contra mim e contra os acontecimentos que estão para além da minha força de decisão.

Quais foram os maiores desafios enfrentados na sua trajetória até agora?
Lidar com os formatos fechados dos circuitos de arte. Desde a forma como esperam que os projetos sejam apresentados, até os meios de circulação das obras. Principalmente ao que se refere ao mercado brasileiro, ainda vejo um circuito fechado e pouco diverso. A assimilação de obras efêmeras pelo mercado ainda é um tema pouco explorado aqui, e a negociação com obras criadas in loco também ainda é frágil, as pessoas estão acostumadas com formas fechadas de projetos e isso exige direcionar um esforço para algo que é pouco útil em meu processo criativo, o que dificulta conseguir financiamento para algumas obras mais ousadas.

Eu me envolvo diretamente com o peso que decido criar, e isso é um diferencial. Por eu ser mulher, isso espanta.
— Anaïs Karenin

Como você enxerga seu papel como mulher artista no cenário artístico nacional?
Trabalho muito com materiais brutos, pesados e "sujos", embora haja uma delicadeza na forma como opero. Já vi isso surpreender muitas pessoas, que ainda esperam que artistas mulheres façam obras mais “discretas”. Geralmente meus trabalhos ocupam espaço, intervém, desafiam a própria capacidade do meu corpo de lidar com o peso das montagens. Acho que nesse sentido eu represento uma atuação importante junto a outras artistas que estão atuando também nesse sentido: por conta própria. Eu me envolvo diretamente com o peso que decido criar, e isso é um diferencial. Por eu ser mulher, isso espanta.

Qual o seu entendimento sobre a necessidade e importância de se ter iniciativas voltadas exclusivamente às mulheres e outros grupos minoritários?
Pessoalmente foi essencial em minha trajetória ter atuado em projetos de arte e tecnologia voltado para mulheres, me possibilitou reconhecer meu lugar no mundo. Mas também foi necessário reconhecer meu potencial de habitar os lugares e iniciativas que não foram feitos para mim. Acredito que essas iniciativas são essenciais para fortalecer bases, mas também é muito válido que elas ensejem a força individual, de independência e autonomia para além delas.