horizontalidade e resistência – só o tempo irá mostrar o impacto da documenta fifteen

Poster da Documenta em frente ao Fridericianum durante a abertura da Documenta 15, Junho de 2022, Kassel, Alemanha. Foto: Thomas Lohnes/Getty Images, via artnet.

Kassel é uma cidade um tanto insípida. Com mais de 90% da sua arquitetura original destruída em bombardeios por parte dos Aliados durante a Grande Segunda Guerra, o prédios que vieram após esse período são de beleza questionável; a culinária é, digamos, insossa (até para padrões alemães); e não há muito mais a se fazer por lá além de peregrinar a cada 5 anos para ver a maior mostra de arte do mundo. 

De primeira, esse fato já soa um tanto dissonante: como uma cidade sem a menor relevância internacional pode ser palco da maior exposição de arte da atualidade? A resposta reside em Arnold Bode, arquiteto, curador, e grande homem de ideias, que envisionou a documenta. 

Arnold Bode na frente da obra Number 32, de Jackson Pollock. © documenta archive / Werner Lengemann.

O internacionalismo típico da documenta – essência que ainda é muito presente – contrasta diretamente com o nacionalismo típico do século XX, no formato “olimpíadas”, através de pavilhões nacionais, da Bienal de Veneza. 

Bode, um alemão de Kassel, que vendo sua cidade destruída em 1946 – incluindo o museu Fridericianum (uma das instituições culturais públicas mais antigas do mundo, datada de 1779), foi tomado pelo idealismo do pós-guerra e, vendo a Alemanha isolada do contexto europeu, criou a documenta em 1955 como uma forma de aproximar a cena artística internacional (vale ressaltar que arte internacional naquele contexto significava arte europeia, principalmente francesa). 

Ao longo dos anos, a mostra foi ganhando notoriedade. Em sua segunda edição, em 1959, Rudolf Zwirner (pai do grande galerista David Zwirner) foi o secretário principal, trabalhando diretamente com Bode (recomendo sua autobiografia, Give me the Now para um mergulho profundo na cena alemã do pós guerra). Okwui Enwezor foi o primeiro não-europeu a ser responsável pela curadoria da mostra, em 2002 – feito repetido apenas 20 anos depois por Carolyn Christov-Bakargiev, curadora da documenta 13, que nasceu nos EUA mas detém nacionalidade italiana.

ruangrupa, 2019, Ajeng Nurul Aini, farid rakun, Iswanto Hartono, Mirwan Andan, Indra Ameng, Ade Darmawan, Daniella Fitria Praptono, Julia Sarisetiati, Reza Afisina, Foto: Gudskul / Jin Panji. via documenta fifteen.

A documenta fifteen abriu oficialmente ao público no último dia 19 de Junho. Dessa vez, a mostra trouxe uma proposta muito diferente das edições anteriores: o foco no processo em vez de objetos. 

Ruangrupa é o “coletivo” responsável por esta edição. As aspas são necessárias porque o coletivo, neste contexto, não é bem o que se entende por um coletivo de arte: são jornalistas, arquitetos, acadêmicos e ecologistas. Não se sabe muito bem quantos integrantes o grupo possui além dos 10 membros principais; não se juntam para montar exposições da maneira convencional; não confeccionam objetos de arte. Nem sequer experiências fugazes, como performances, são criadas por eles. De acordo com NY times, a única vez que o grupo expôs em uma galeria foi há duas décadas. 

O mote principal é a colaboração coletiva, onde qualquer tipo de autoria individual fica em segundo plano, e decisões processuais como de que cor pintar as paredes, qual tipografia utilizar ou qual texto imprimir, acabam por se tornar o trabalho em si: “Até abrir uma cafeteria pode ser um trabalho de arte”, afirma Ade Darwaman, um dos fundadores do coletivo. 

Não é possível “medir” essa documenta. Quantos artistas estão expondo? 67 nomes foram convidados pelo ruangrupa, dentre esses, alguns são coletivos, que incluem artistas que convidam outros artistas, e por aí vai. É como se o ruangrupa fosse o tronco de uma árvore: os galhos são os coletivos, os artistas são as folhas, e a arte em si, as flores e frutos, que geram sementes (a arte relacional, os projetos conduzidos) que fazem nascer outras árvores que, por sua vez, gera um padrão exponencial de alcance. 


Public Daycare (2022), de Graziela Kunsch. Imagem: Graziela Kunsch e Elke Avenarius na Documenta 15. Foto: © Kirsten Ammermüller. Via hna.de.

Tive a sorte de encontrar Graziella Kunsch, a única brasileira presente na mostra, no espaço dedicado a seu projeto. Numa das grandes alas do Fridericianum, a artista transformou o museu num day care para bebês de 0 a 3 anos. Quem visita o espaço fora do horário proposto para o day care (de 10 da manhã até as 5 da tarde) e o encontra vazio, com mobiliário característico, uma cozinha equipada, uma mesa com cadeiras e uma pequena biblioteca específica sobre maternidade e algumas lindas fotos, não entende exatamente do que se trata, como foi o meu caso. 

Grazi estava com Manu, sua filha e protagonista do vídeo que se situa logo na entrada do espaço. Foram anos e anos acompanhando o processo de crescimento e individualização de Manu com a câmera: Kunsch cria Manu através da abordagem pedagógica Pikler, que é o eixo principal de todo projeto. 

Graziela Kunsch com sua filha Manu. Foto: Daniel Guimarães, 2020. Imagem retirada do site naocaber.org

Grazi me conta que já conhecia a abordagem Pikler desde antes do nascimento de Manu, mas quando foi atravessada pela experiência da maternidade, seus desafios e descobertas, dedicou-se a entender e colocar em prática o método desenvolvido pela pediatra húngara na criação de sua filha. 

Todo mobiliário foi planejado e desenvolvido por Graziella, que é adaptado para que os bebês circulem livremente no espaço: sem quinas pontiagudas, pontas arredondadas, pequenos degraus para mobilidade, etc. 

Manu’s free motor development (2019-em processo), de Graziela Kunsch. via Select.

A principal linha de estudo de Pikler é a autonomia dos bebês, percebidos como seres datados de individualidade própria e vontade. A ideia é que durante as atividades de troca essenciais entre adultos e bebês, como trocar a fralda, dar banho, etc, o adulto esteja 100% presente e, antes de tocar no corpo da criança, a comunique gentilmente dos movimentos que vai executar. E nos momentos chamados de “brincadeira livre” os bebês devem estar total e completamente livres, sem nenhum tipo de intervenção. A autonomia que a independência gera é gritante, e são esses momentos capturados pela fotógrafa Marian Reismann.

Public Daycare (2022), de Graziela Kunsch. via Select.

De acordo com Kunsch, rapidamente os bebês internalizam a linguagem, e depois de algum tempo já executam movimentos impressionantes, impensáveis no contexto do desenvolvimento comumente indicado pela pediatria ocidental. 

Escutar Kunsch é adentrar um universo de linguagem totalmente inexplorado até então pelo mundo da arte – seu projeto não é o único voltado para as crianças: RURUKIDS “é um espaço de portas abertas para que todas as crianças possam desfrutar da área de jogos, projetos especiais, sala da biblioteca e exibições durante o horário de abertura das 10h às 20h.”

Poderia escrever páginas inteiras sobre cada um dos projetos da documenta e ainda assim não daria conta de todo escopo de proposições. A questão principal, é exatamente essa: abrir mão do controle de ver e saber. A horizontalidade da proposta confronta a ideia ocidental de insularidade da arte. O tamanho da disrupção é diretamente proporcional ao tamanho da resistência ao que foi feito (vide todas as polêmicas e censuras – uma espiral inteira de acontecimentos e informações que não vale a pena adentrar aqui), e acredito que ainda vai levar algum tempo para entendermos de fato o tamanho do impacto e influência que essa edição vai causar no mundo da arte.

Party Office suspended all live programming on June 19, one day after the exhibition opened.

O fato é que, agora mais do que nunca, é visível que instituições criadas nos séculos passados não se adaptaram ao zeitgeist atual – existe uma disparidade entre os curadores ou coletivos chamados para assinar cada projeto, e as instituições em si. O tokenismo, que até então não reiterou-se pelo argumento de que “pelo menos estamos ocupando espaços”, não serve mais, pois o processo de descolonização já chegou na esfera estrutural das organizações: fica muito clara a separação entre as propostas, inovadoras, e as instituições, conservadoras e arcaicas.

O coletivo “Party Office”, de Nova Dheli, por exemplo, em um post de Instagram (agora deletado), demandou que o escritório da documenta liberasse os dados de gênero e raça de seus funcionários, numa aparente tentativa de deslegitimação da instituição, após a decisão de cobrir de preto e retirar o painel “People’s Justice,” 2002, do coletivo Indonesiano Taring Padi, que continha imagéticos depreciativos da cultura judaica

Taring Padi's mural at Documenta 15.PHOTO THOMAS LOHNES/GETTY IMAGES. via artnews.

Já a última polêmica aconteceu com a artista Hito Steyrl, que resolveu tirar seu trabalho do Museu de História Natural de Kassel (um dos melhores trabalhos da edição, em minha opinião). Dentre os motivos, citou a  incapacidade de criar um espaço onde as questões divisórias poderiam ser discutidas e as "condições de trabalho inseguras e mal remuneradas" de alguns funcionários. E pelo visto, não vai ser a última. 

De fato, vai ser muito interessante acompanhar os desdobramentos dessas iniciativas daqui em diante. Atingimos um ponto no tempo em que a forma de se pensar e fazer arte já é totalmente distinta da pensada por Bode anos atrás. Resta saber, do que é novo, o que fica e o que não fica: e isso apenas o tempo irá dizer.