Kara Walker | A Black Hole is Everything a Star Longs to Be | Kunstmuseum Basel

Kara Walker é uma artista norte-americana de 51 anos. Nascida na Califórnia, em Stockom, mudou-se com sua família para Atlanta e ali concluiu seus estudos. No mesmo ano em que terminou o Mestrado na Rhode Island School of Design, participou de uma coletiva no Drawing Center, em Nova Iorque, com um mural intitulado "Gone: An Historical Romance of a Civil War as It Occurred Between the Dusky Thighs of One Young Negress and Her Heart." O universo iconografico de Walker como conhecemos já estava ali presente: as silhuetas de figuras recortadas em papel negro, criando histórias e narrativas que aludem a história de colonização e identidade da América. 

Kara Walker. Gone: An Historical Romance of a Civil War as It Occurred b'tween the Dusky Thighs of One Young Negress and Her Heart. 1994. MoMA

Em A Black Hole is Everything a Star Longs to Be, que esteve em exibição no Kunstmuseum Basel de junho a setembro, a artista mostra 600 desenhos feitos ao longo de 30 anos de sua carreira, muitos inéditos. Aquarelas, colagens, desenhos e ilustrações compõem a exposição com curadoria de Anita Hadelmann. 

O arquivo apresentado da artista parece estar em conflito constante com a coleção do museu: o primeiro revelando a ferida aberta da narrativa colonial, e o segundo assegurando uma falsa paz e até monotonia, com relação à exposição de Camille Pissarro. 

Vista da exposição. Foto: Julian Salinas.

Entrar nas salas do Neubau no Kunstmuseum e ver a intimidade escancarada de Walker é como se sentir abrindo a caixa de Pandora do idílico sonho americano. Os desenhos denominados pela artista de “escrita automática”, servem quase como chaves de diálogo para as histórias construídas, baseadas em mitos fundamentais. A riqueza de detalhes nos transpõe diretamente para a realidade violenta e crua de Walker, que está longe de seguir a linha do politicamente correto. 

É interessante perceber que o tempo inteiro a artista joga com as noções de arquétipo e estereótipo. A noção Junguiana de arquétipo se define como "uma ideia inconsciente herdada coletivamente, um padrão de pensamento, imagem, etc., que está universalmente presente, em psiques individuais" – um arquétipo é, portanto, um símbolo recorrente impresso antes da mente racional chegar a conclusões conscientes e nos remete a realidades instintivas herdadas de nossos ancestrais como táticas de sobrevivência. São chaves de leitura de comportamento humano localizados no limiar da formação cultural e social de um indivíduo. 

Já estereótipos são reduções. Desumanizam, generalizam e acachapam individualidades. Estereótipos de gênero, raça, identidade e cultura, são utilizadas como clichês nocivos e Walker os transmuta, dando força  potente aos personagens que cria, subvertendo o reducionismo dos estereótipos e os transformando em arquétipos mitológicos.

Vista da exposição. Foto: Julian Salinas.

Dentre as grotescas representações de personagens estereotipados presentes no imaginário norte-americano, estão Mammy, a governanta de “O vento levou¨, interpretada por Hattie Macdaniel, primeira afro americana a ganhar um Oscar, em 1936; Mandingo, um homem insaciável com um pênis enorme. Bem no século XIX, ele foi considerado nos EUA como um objeto de desejo pelas sinhás e era, portanto, a personificação do pesadelo do proprietário de escravos branco. A contraparte feminina do Mandingo é Jezebel, uma mulher hipersexual promíscua de comportamento dominante. 

Fazendo uso de sarcasmo e ironia, a artista confunde o público porque não assume um eu lírico único, ora assume-se como oprimida e ora como opressora. Um grande painel com a frase "I am not my negro”– uma alusão direta ao documentário sobre James Baldwin de 2016, é uma das peças mais icônicas da exposição, pois ao trocar a palavra "your", do titulo original, por "my”, coloca o Negro no centro do discurso, assumindo o protagonismo da narrativa e quitando toda e qualquer noção de complacência, vitimismo e exotismo da frase original. 

Kara Walker, I am not your negro, 2020, 211.5 x 182.9 cm); Carvão e pastel sobre papel, 2021 © Kunstmuseum Basel. Via Max Glauner.

 Dentre as variadas escalas que trabalha, de pequenas aquarelas a monumentais painéis, chamam atenção não só pelo tamanho, mas também pelo conteúdo, as obras em que retrata Barack Obama em distintos contextos. Para Walker, Obama não foi só o primeiro negro presidente, mas o "presidente da esperança".

Vista da exposição. Foto: Julian Salinas.

Ao todo, são 4 desenhos retratando o ex-presidente americano: Barack Obama as “An African“ with a Fat Pig (by Kara Walker), Barack Obama Tormented Saint Anthony Putting Up With the Whole “Birther” Conspiracy, Allegory of the Obama Years by Kara Walker, Barack Obama as Othello “The Moor” With the Severed Head of Iago in a New and Revised Ending by Kara E. Walker.

Além de inserir-se como parte da odisseia, que tem Obama como protagonista, através do recurso de adicionar aos títulos dos desenhos seu nome, Walker concebe Obama como mártir, santo, herói e líder, teatralizando o sagrado e o profano em suas representações. No primeiro ele é colocado como líder tribal, segurando uma lança, sentado sob um porco. A cena dá a entender que o animal acaba de ser caçado pelo personagem e provavelmente vai servir de alimento para a tribo -- aqui ele atua como o benevolente provedor, responsável pelo alimento e pela paz de seus iguais.

Kara Walker, Barack Obama as “An African” With a Fat Pig (by Kara Walker) (2019). © Kara Walker, courtesy of Sikkema Jenkins & Co., New York. Via Artnet.

No segundo desenho, Walker aborda indiretamente teorias conspiratórias  surgidas durante a campanha presidencial de 2008, que afirmavam que Obama não poderia concorrer a presidente, pois não teria nascido nos Estados Unidos. As figuras demoníacas seriam os disseminadores de notícias falsas. O desenho faz referência direta à ilustração de A tentação de Santo Antonio, de Martin Schongauer, que retrata uma lenda sobre António de Pádua escrita por Athanasius de Alexandria, onde o santo teria sido atacado por demônios no deserto do Egito.

Kara Walker, Barack Obama Tormented Saint Anthony Putting Up With the Whole “Birther” Conspiracy (2019). © Kara Walker, courtesy of Sikkema Jenkins & Co., New York. Via Artnet.

Em Allegory of the Obama Years by Kara Walker, uma mulher negra clama pela figura do salvador presidente, cujo semblante aparece entre nuvens escuras. Com múltiplas interpretações, a imagem serve tanto de prólogo como epílogo da representação dos anos de Obama no poder.

Kara Walker, Allegory of the Obama Years by Kara E. Walker (2019). © Kara Walker, courtesy of Sikkema Jenkins & Co., New York. Via Artnet.

A quarta e última imagem é a mais emblemática da série, onde a artista apresenta um novo final ao drama Shakespereano de Otelo. Aqui Iago seria a personificação da ideia de supremacia branca, que um cansado, porém altivo Obama teria conseguido dominar. Como uma metonímia do que Walker apresenta como linha de trabalho ao longo dos anos, o desenho de Obama como Otelo forja novos desfechos, abrindo caminhos para novas perspectivas, menos áridas, com energia vital pulsante.

Kara Walker, Barack Obama as Othello "The Moor" With the Severed Head of Iago in a New and Revised Ending by Kara E. Walker (2019). © Kara Walker, courtesy of Sikkema Jenkins & Co., New York. Via Artnet.

Extremamente contundente e inspiradora, a iconografia do universo de Walker não deixa o público intacto às suas provocações. Presenciar a obra da artista é um convite a adentrar a própria psique, e trazer à luz dores inconscientes de uma sociedade ocidental doente, marcada pelo recalque da própria sombra.

exposições, resenhasCarol Carreteiro