Arte na quarentena | Priscilla Menezes

Logo no inicio da quarentena a Priscilla Menezes, artista visual e professora radicada no Rio de Janeiro, apresentou um projeto muito bonito no perfil dela do Instagram. A proposta consistia em reunir, em um texto editado, notícias cotidianas enviadas por amigos com o intuito de contrapor às notícias da pandemia, que embora necessárias, foram (e ainda são!) fontes de ansiedade para muitas pessoas.

Nessa conversa, Priscilla, em respostas densas, sensíveis e generosas, nos conta um pouco sobre esse projeto e também sobre os seus pensamentos e processo de criação nesse período de exceção que estamos vivenciando.

Como surgiu a ideia de reunir notícias cotidianas que pudessem contrapor à enxurradas de notícias catastróficas relacionadas à pandemia?
O chamado por notícias cotidianas foi motivado pelo desejo de pluralização dos sentidos e multiplicação das narrativas. Foi um pequeno gesto de combate à noção de  realidade, como um universal, e a aposta na ideia de realidades, com seus  atravessamentos comuns e suas potências singulares. Acho importante pontuar que aprendi muito sobre isso em uma experiência anterior quando, em 2018, após o primeiro turno das eleições, e eu e várias mulheres do Movimento Respeita! nos reunimos para fazer um trabalho a ser exposto em uma mostra de artes visuais. A ideia era que cada uma escrevesse uma correspondência dando notícias suas para que, de cada uma delas, extraíssemos pelos menos um trecho e editássemos um texto em comum. Maria Isabel Iorio sugeriu que transcrevêssemos esse texto sobre uma caixa de papelão desmontada e deu a ideia de um título, São nossas as notícias que daremos, que veio depois a nomear também uma zine nossa. Nessas experiências, eu aprendi que mesmo diante do que se apresenta terrível e fatal, nós temos direito de testemunhar desvios e conspirar outros destinos. Outro aspecto que motivou essa chamada pelas notícias alheias foi simplesmente o desejo por contato e colaboração. Naqueles dias eu conversava com um amigo e ele me disse uma frase que me marcou: "o que importa agora é criar alguma engrenagem coletiva". Nesse sentido, esse trabalho foi o ensaio de uma pequena engenharia de coletividade em meio a impossibilidade de estar corporalmente junto. As notícias chegavam por DM e a mim cabia editar o que era transmitido, colhendo o que considerava mais potente de cada relato, traduzindo essas forças em textos nos quais o estilo de quem me escrevia e meu próprio modo de narrar eram postos em negociação, fazendo enfim tudo isso caber em uma pequena tela quadrada legível no Instagram. Ao propor esse processo colaborativo, acabei me deslocando para lugares pouco usuais para mim, atuando como uma espécie de editora-tradutora. Talvez, por fim, o que tenha me motivado a realizá-lo tenha sido o desejo por algum deslocamento.  

Esse projeto foi feito logo no início da quarentena e foi apresentado em três posts. Você continua a receber notícias? Pretende seguir com ele de alguma forma?
Além dos três posts com os textos por escrito, produzi um vídeo no qual leio as notícias recebidas e as transmito acompanhadas de uma filmagem feita na minha casa, sobrepondo o noticiário alheio a pequenas pistas dos meus próprios acontecimentos.  Depois da publicação do vídeo, interrompi a chamada pelas notícias, porque esse é um trabalho que me demanda muita presença, abertura e disposição e, ao passar dos dias, acabei precisando reservar esses recursos para outras realizações. Cabe pontuar que Noticiário é mais um processo do que um trabalho pronto, que foi sendo realizado a partir das possibilidades e urgências daquele momento. Por isso que o vídeo, por exemplo, está com a marca d'água do editor gratuito que usei para editar no celular e facilitar a postagem no Instagram (e lá eu sabia que o Igtv cortaria essa marca). Se fosse exibir esse trabalho em outra mídia, ele certamente precisaria ser retrabalhado e adaptado.

Noticiário, 2020

O chamado por notícias cotidianas foi motivado pelo desejo de pluralização dos sentidos e multiplicação das narrativas. Foi um pequeno gesto de combate à noção de  realidade, como um universal, e a aposta na ideia de realidades, com seus atravessamentos comuns e suas potências singulares

No que você está trabalhando agora? Como a quarentena está afetando o seu trabalho?
Até aqui, tenho tido o privilégio de poder exercer o meu direito ao isolamento social. Além de artista, sou professora, e tenho praticado esses fazeres em minha casa enquanto, ao mesmo tempo, cuido daquilo que me parece ser o mais importante: as demandas e as potências da subsistência. Estar viva tem sido estar atenta aos fluxos que engendram as minhas emoções, o meu corpo, a minha casa. Tem sido também estar atenta às pessoas que me cercam (por afeto ou por agrupamento geográfico), buscando colaborar em redes de apoio. Tem sido ainda estar atenta aos moveres coletivos, criando meios de me integrar ou, pelo contrário, resistir. Enfim, os trabalhos em torno do cuidado com a vida (que, estamos percebendo com uma evidência brutal, ultrapassam em muito os cuidados com a individualidade) tem sido o mais importante. Com isso, tenho percebido uma característica que permeia todos esses fazeres: o inacabamento. Os trabalhos de produção e de sustentação da vida  se impõem como a constante lida com as oscilações. Produzir vida não tem nada ver com domínio e acabamento, mas com a constante negociação com a imprevisibilidade e a transformação e isso se relaciona fortemente com o modo como eu compreendo o fazer poético. Nesse sentido, ao prestar mais atenção na tessitura da minha subsistência, eu tenho compreendido mais sobre o que impulsiona o meu fazer artístico, de modo que não tenho separado tanto o “produzir possibilidade de uma vida” de “produzir um trabalho poético”. Meus trabalhos tem acontecido, em sua maioria, a partir de pequenos lampejos engendrados pelo esforço de experienciar e dar sentidos ao que vivo. Isso tem se dado, por exemplo, quando, durante uma faxina, vou arrumar minha estantes de livros e abro um livro de anatomia justamente na página sobre o sistema circulatório, o que me faz pensar na relação entre imobilidade-deslocamento evocada pelo isolamento social e então  sentir desejo de dar forma a essa questão em um desenho  (Outras circulações). Ou quando começo a ver notícias sobre animais circulando mais livremente pelas cidades por conta da quarentena e me dou conta de que ano passado escrevi um poema no qual apresento uma insurgência de animais que avançam ferozmente sobre uma cidade. Dessa estranha coincidência surge o desejo de justapor a leitura do poema com imagens desses animais avançando pelas ruas do mundo coletadas de telejornais. Ou então quando sinto fortemente a falta que me faz encarar de frente a linha do horizonte e me ponho a justapor fotografias antigas com imagens recentes da minha cama (série Conjurar horizontes nos meus lençóis) como que para dar corpo à possibilidade de um horizonte fabulado nessa minha atual paisagem diária. Criar não tem sido tanto premeditar processos, mas sim estar atenta ao que se apresenta e me manter disponível para conversar com as faltas, os deslocamentos e as contingências.

Esse momento que vivemos tem reforçado para mim a dimensão ética dessa pesquisa poética: a consideração de que todos os seres, humanos e não-humanos, são interdependentes e que cuidar de si passa necessariamente por cuidar de uma teia de relações.

Que perspectivas você enxerga para o seu trabalho e para arte em geral no momento pós-pandemia?
Penso que, há um tempo, o meu trabalho vem mobilizando variações a partir da tensão entre individuação e  encontro, produzindo imagens de frequentações: relações entre seres que se tangenciam, se entrecruzam, se misturam sem abandonarem, de todo, o próprio ser. Esse momento que vivemos tem reforçado para mim a dimensão ética dessa pesquisa poética: a consideração de que todos os seres, humanos e não-humanos, são interdependentes e que cuidar de si passa necessariamente por cuidar de uma teia de relações. Não consigo conceber nenhum dos meus trabalhos (como artista, poeta, professora e dona de casa) sem a profunda consideração dessa questão, que já me acompanhava e que agora parece se tornar um eixo incontornável para construção de tudo que virá.  Em relação ao campo da arte, acho que talvez o fazer artístico recupere um dos seus sentidos fundantes: o do trabalho de luto. Alguns historiadores da arte posicionam a gênese do fazer poético na abrupta tomada de  consciência da  finitude, colocando a criação como aquilo que fazemos não contra o não-saber; mas com ele. A mim me parece crucial que façamos o luto de um mundo que vai deixando de existir sem que ainda saibamos o que criaremos em seu lugar. Talvez seja essa uma das tarefas mais cruciais para o campo da arte: reconhecer o que acaba e transfigurar a pura perda em potência de transformação.

Conjurar horizontes, 2020

Conjurar horizontes, 2020